O jovem Paulo Eduardo tinha 18 anos quando ouviu de um paramédico: “Você perdeu as duas pernas e terá que viver com isso.” Cinco anos depois, ele subiu, andando, os degraus do palco do Copacabana Palace para receber o Prêmio Faz Diferença do GLOBO. Num discurso forte e emocionado, falou da luta de todos os brasileiros com deficiência: “Somos 25 milhões.”
Há muita notícia ruim nas páginas do jornal. Não é preferência nossa pelo errado, é este o nosso ofício e há abundante oferta desta matéria-prima: a má notícia. No prêmio que damos para os que fazem diferença em cada área, somamos o certo numa noite só. Fica uma sensação de que o país avança pela força de seus cidadãos, a despeito dos percalços e erros.
Se duvidar, faça as contas: uma mulher sozinha, que a imprensa batizou de dona Vitória, com 80 anos, decide gravar durante dois anos os crimes que aconteciam diante de sua janela, e isso leva à prisão 29 traficantes, entre eles 9 policiais cúmplices. Um deputado, Fernando Gabeira, do seu microfone no plenário, alerta o presidente da Câmara que ele está em contradição com o Brasil, e o presidente cai. Duas atrizes, Marieta Severo e Andréa Beltrão, pressionadas pela falta de espaço teatral no país, alimentam o sonho de construir um teatro, e constroem mesmo. Um médico, Drauzio Varella, decide usar novos meios para cumprir seu papel de salvar vidas e consegue, ao mesmo tempo, informar e fazer boa televisão. Um ginasta, Diego Hipólito, fratura a tíbia, fica seis meses sem treinar, recupera-se e volta a disputar com garra campeonatos mundiais. No último domingo, recebeu duas medalhas. Um pensador, Adauto Novaes, conseguiu montar ciclos de palestras com temas profundos e inquietantes e pôs 10 mil cabeças para pensar. Um cineasta, Breno Silveira, fez um filme simples, a saga de um brasileiro comum, que virou a maior bilheteria em 20 anos, batendo as produções estrangeiras. E ele já está de olho em outras sagas, histórias de pessoas, de brasileiros. Uma cientista, Mayana Zatz, que vai à luta, tentando convencer deputados de que era fundamental permitir a pesquisa com células embrionárias, e é bem-sucedida em seu desafio. E avisa à imprensa — que ela chamou de aliada — que vai nos convocar para outras brigas. Um epidemiologista, Luiz Loures, mergulha no programa brasileiro contra a Aids e vira o diretor de Iniciativas Globais, um dos postos mais altos do Programa de Aids das Nações Unidas. No discurso, contou que o Brasil fez diferença no mundo neste assunto: fez um programa pioneiro de combate à epidemia que virou modelo mundial, copiado por vários países. Mas alerta que a luta contra a Aids é a luta contra outras mazelas: a violência contra a mulher, por exemplo.
Na economia real, terreno tão repleto de más notícias, o jornal premiou o presidente de uma empresa que tem mais de 100 anos, vai muito bem de saúde e virou empresa globalizada, mantendo-se brasileira: a Gerdau, de Jorge Gerdau. Premiou também um fenômeno de marketing, as sandálias Havaianas que, com 42 anos de existência, renovaram-se, viraram moda e são exportadas para 80 países. Delas, por ano, produzem-se 150 milhões de pares. E outra empresa, a Natura, que abraçou de tal forma a causa ambiental que a atitude agregou valor à sua marca, mostrando uma mudança de valores do próprio consumidor.
Dois conjuntos musicais ganharam prêmio: o Rappa e o Afroreggae. Ambos agradeceram ao poeta Waly Salomão por lhes dar força, orientação, apoio em momentos de dificuldade: um poeta baiano passou pelo Rio e fez toda a diferença no seu curto tempo de vida. Os dois grupos, que hoje vão muito além da música e mudam a perspectiva de vida de milhões de jovens, tiveram no nosso doce Waly uma força que eles não esqueceram.
Quando o Afrolata entrou, com o Afroreggae no palco, com seus instrumentos de percussão feitos de lata, com uma energia inquietante, na entrega do Personalidade do Ano, os tapetes do Copacabana Palace começaram a sair do lugar, a força transbordava. Era o fim de uma noite de muita emoção. Paulo Eduardo Aagaard, o Pauê, foi incrível: o rosto menino, a força inesperada e um discurso claro comoveram. Depois do acidente, ele virou um desportista, ganhou o campeonato mundial de triatlo para biamputados no México e se prepara para a mais difícil prova do gênero no Havaí. Sua fala é clara, ele estende sua visão aos outros milhões que precisam de apoio para vencer.
Dona Vitória, uma pessoa da qual não sabemos nome nem rosto, não pôde ir, pois está no Programa de Proteção à Testemunha, mas mandou um impressionante depoimento gravado por ela mesma. A personagem, descoberta pelo repórter Fábio Gusmão, do “Extra”, dá uma lição que vai além até da prisão de 29 pessoas. Ela disse que não é fácil viver o que está vivendo, que não se sente heroína, apenas fez o que era natural e espera que outras pessoas façam também a sua parte; no fim, lembra que o Brasil não tem que aceitar o que aceita, porque não é uma colônia, é um país livre. Sua mensagem ficou mais forte porque dita por aquela voz com misturador, por uma pessoa que tem que se esconder por ter feito a coisa certa. O Brasil tem andado de baixo astral pelos inúmeros erros dos políticos e das instituições, pelo crime que se alastra parecendo invencível, mas quem faz a soma dos atos de pessoas, comuns ou famosas, velhas ou jovens, fica com a doce sensação de que a gente vai encontrar a saída deste labirinto.
Fonte: Jornal O Globo